sexta-feira, 30 de março de 2007

"Chacrinha?!"

"De tanto falarem em Chacrinha, liguei a televisão para seu programa que me pareceu durar mais que uma hora.

E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório também cheio. É um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocupa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo o instante — falta-lhe imaginação ou ele é obcecado.

E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo à custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos até de setenta anos. Com exceções, os calouros são de origem humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?

Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente."

Clarice Lispector, em crônica publicada em 1967 pelo Jornal do Brasil,
extraído de A descoberta do mundo, ed. Rocco.

Você ainda não tinha visto nada, Clarice. Ainda não tinha visto nada...


quarta-feira, 28 de março de 2007

Nova Metodologia

Andei refazendo uns cálculos por aí e revisei minha idade 15% para baixo, o que me dá mais alguns anos de vida pela frente; e meu tempo de contribuição previdenciária, na verdade, era 20% maior que as estatísticas anteriores, o que me aproxima um pouco mais de poder me aposentar. Com a nova metodologia, verifiquei também que o meu saldo bancário e minha poupança (ops!) aumentaram em, no mínimo, 70%. Vou ligar e comunicá-lo ao meu gerente amanhã mesmo, para que ele faça as correções. Outro indicador importante que foi melhorado com a nova forma de cálculo do IPGE (Instituto Pessoal de Geografia e Enganações) é que meu aluguel deve baixar, já que se vão levar em conta agora as lâmpadas queimadas e o barulho do vizinho de cima, que não tinham sido considerados para o cálculo original.
Revisei para cima também minha nota na prova do último concurso público que fiz e — surpresa! — passei!!! O Cespe receberá minha notificação nos próximos dias. Minha conta do cartão de crédito foi revisada para baixo, e o banco me deve alguma coisa, assim como o leão do imposto de renda.
De acordo com a nova metodologia, a quilometragem do meu carro foi reduzida em 20%, o que gerou valorização do meu patrimônio. Os próximos números a serem revisados de acordo com a nova metodologia de cálculo do PIT (Produto Interno Tosco) são as visitas registradas pelo Sitemeter a este blogue, que estão evidentemente subestimadas, porque não levam em conta as visitas informais, que elevam em cerca de 10% o número de acessos por dia; e, na trilha do Romário, o meu número de gols marcados em peladas oficiais, que, por baixo, já contam mais de cinco mil. Morra de inveja, baixinho. Me segura que eu quero ver!

...

Como diz lá em Minagerais, eu güênto?!

segunda-feira, 19 de março de 2007

Sábado

Terminei ontem de ler o último romance (acho que é o último) de Ian McEwan, Sábado. Como já tinha gostado muito do Reparação, li o segundo com a melhor das expectativas. E, a bem da verdade, ainda assim consegui me surpreender com o quanto o livro é bom. McEwan constrói um enredo de apenas um dia, lembrando nisso o Ulisses de Joyce. A história é protagonizada por um neurocirurgião e, apesar de a narrativa ser em terceira pessoa, ela se desenvolve do ponto de vista dele, um fluxo de pensamentos contínuo, envolvente, interminável, cada ideia que passou pela cabeça de Henry Perowne naquele dia é contada nos mínimos detalhes. E, sem de modo algum deixar o livro chato, o domínio que McEwan tem da escrita é tamanho, que é impossível não se sentir na pele do personagem.

Gosto das descrições perfeitas que ele faz. Mesmo das cirurgias cerebrais contadas nos mínimos detalhes. O filho de Henry é guitarrista, toca blues, e as melodias e improvisos são descritos de maneira tão bela que quase é possível ouvi-lo tocar. O cuidado com que são amarrados os pensamentos de Henry suscitam reflexões interessantes acerca de como tomam forma nossas opiniões, nossos pontos de vista sobre todas as coisas. E o que não falta no texto são opiniões fortes, pois o sábado narrado está às vésperas da invasão americana ao Iraque. Não que o livro caia na besteira de querer convencer o leitor da razão de seja lá quem for. Pelo contrário, mostra-se a fraqueza, a imperfeição da opinião, qualquer que seja ela. O próprio personagem assume que só tem determinada opinião sobre a guerra porque um dia conversou com alguém que lhe disse certas coisas. Do contrário, poderia estar do outro lado da discussão. Enfim, parece que, de fato, onde abundam as certezas, falta inteligência. Não que McEwan diga isso. Ele passa longe de qualquer tentação de afirmar clichês.

A outra filha de Henry é poetisa (o tradutor usou a palavra "poeta" em todas as ocorrências e, aliás, a tradução é a única coisa que perde, neste livro, em relação ao outro, que foi primorosamente traduzido; o que não significa que a tradução deste seja ruim). O sogro também é poeta. Portanto, a reflexão acerca da poesia — e da literatura como um todo — permeia toda a narrativa. Uma delas, aliás belíssima, está reproduzida aí num post anterior, vê lá e diz se eu não tenho razão de recomendar o livro. Aliás, a poesia ganha um papel tão importante no fim da história que, se eu disser qualquer outra coisa, estrago a surpresa de quem o for ler.

Então aproveita e vai ler, vai. Se você passa mal quando pensa em sangue e cérebros cortados, recomendo ler deitado, como eu fiz. Bom fim de semana.

sexta-feira, 16 de março de 2007

M. A.

Tem um continho novo ali no De minha autoria:. Mas acho que ninguém vai gostar.

E o meu irmão, fotógrafo, está passeando por Londres e batendo umas fotos belíssimas. Quem quiser ver, entra aqui, ó.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Só pra ficar claro

Que não restem dúvidas: Rodrigo de Lemos não sairá da minha lista de bons blogues. Entra lá e lê tudo, vai.

Alilás, aproveita e lê os posts recentes do Fudílson, ou uncle Filthy. E os antigos também.

Estou terminando de ler "Sábado", de Ian McEwan. Quando terminar, comento. Por ora, fiquem com um aperitivo, uma reflexão valiosa sobre a poesia, por um personagem materialista e pragmático que só começou a ler poesia depois que a filha se tornou poetisa:

"Mas isso lhe custou um esforço de um tipo a que não estava habituado. Mesmo um primeiro verso pode provocar um enrijecimento por trás dos olhos. Romances e filmes, por serem agitadamente modernos, impelem a gente para a frente ou para trás no tempo, ao longo dos dias, dos anos ou até das gerações. Mas, para apresentar suas observações e seus juízos, a poesia se equilibra na ponta de alfinete de um instante. Retardar o ritmo, parar completamente, para ler e compreender um poema é o mesmo que tentar adquirir uma habilidade arcaica, como erguer uma muralha de pedras ou hipnotizar trutas para pescá-las."

Belo, belo, belo.

segunda-feira, 12 de março de 2007

Ingênuo, eu?

Continuando a falar de Saramago, uma das críticas que mais ouço a ele é uma alegada ingenuidade ideológica, um comunismo superficial, um esquerdismo de meia pataca. Não discordo frontalmente dessas críticas. Há, de fato, alguns comentários que beiram a infantilidade, ao menos numa leitura literal. Mas ontem terminei de ler Desvarios no Brooklin, de Paul Auster. É um bom livro, bem-escrito, mas recheado de críticas contra Bush, contra a miséria, contra a guerra, contra o capitalismo, contra o consumismo, contra os valores da sociedade moderna. Tudo assim, "o capitalismo é uma merda" enquanto o personagem toma uma coca-cola. Saramago pode pregar uma ideologia ingênua, mas ele leva a sério o que diz. Quando ele diz que o mundo poderia ser diferente, ele de fato acredita que pode mudar (um pouco) as pessoas por meio de suas parábolas. Auster não. Desfila clichês, despretensiosamente, irresponsavelmente. Falou aqui, já esqueceu ali adiante.
Saramago se leva muito a sério. Ingenuamente, mas se leva a sério. Paul Auster dá uma voz moderninha e descolada aos seus personagens, mas não leva a sério nada do que eles são ou dizem. Entre ingenuidade autêntica e palraria irresponsável, ainda conservo melhor lição dos livros de Saramago do que do interessante porém efêmero livro de Auster.
Eu, como leitor, me levo muito a sério.

Aliás (comentário marginal, sem relação com o resto, mas irresistível), por isso mesmo, já abandonei a leitura da maior parte dos blogues que listei aqui do lado. Quando tiver saco, apago ao menos metade deles dessa lista.

domingo, 11 de março de 2007

As intermitências da morte

Terminei de ler recentemente As intermitências da morte, novo (ok, não tão novo assim, mas só agora eu fui ler), o mais recente, então, romance do Saramago. Eu sou suspeitíssimo para comentar, porque gosto muito de tudo o que o velho portuga escreve. Os ensaios, os esporádicos poemas, os contos e, principalmente, os romances, belíssimas obras de acabamento linguístico impressionante e de grande criatividade. Gosto das histórias malucas que ele inventa, das situações tão improváveis que só mesmo na pena irônica e alegórica de Saramago é que podem ganhar algum sentido.

Mas confesso que, depois de ter lido Memorial do convento, não consigo mais achar os demais livros dele tão estupendos. Acho que o Memorial é uma obra tão perfeitamente escrita, tão tão tão bela, tão humana (adjetivozinho miserável que não diz nada, não é mesmo?), de uma elaboração formal tão rica e diferente, que obnubilou (carái!) o brilho de tudo o que fui ler depois. Parece um pouco como se a fórmula tivesse chegado ao seu ponto máximo no Memorial. Deixe-me esclarecer que não li os romances dele na ordem em que foram escritos, então mesmo romances anteriores a esse já não me parecem a mesma coisa após tê-lo lido.

Mas voltemos ao da Morte. Aliás, antes que eu seja fulminado, morte. É um belo livro, com mais uma situação bastante inusitada e criativa. Mas o que gosto principalmente em Saramago é o carinho com que ele constrói seus personagens, os quais o leitor acompanha desde as primeiras páginas até o final da história e de quem vai gostando cada vez mais. No último romance, contudo, o autor opta por narrar boa parte da história sem focalizar nenhum personagem, ou melhor, focalizando esporadicamente vários deles. Recurso, aliás, repetido do livro anterior, Ensaio sobre a lucidez. Particularmente, esse anonimato narrativo, que dá aos fatos importância maior que à construção mesma dos protagonistas (aliás, não os há; ou são, no mínimo, intermitentes), esse recurso, dizia, me parece neutralizar uma das qualidades maiores (a maior, a meu ver) dos textos dele, que é justamente a construção dos personagens.

Outro recurso que, apesar de ser marca registrada de Saramago, já me cansou um pouco é a metalinguagem, a constante análise que ele vai fazendo das palavras usadas na história. Interrompe-se várias vezes a história para se analisar por que foi utilizada tal ou tal palavra e não outra. É uma estratégia formal interessante, muitas vezes divertida, mas lá pelo décimo livro que você lê dele fica meio boba.

De todo modo, o livro é bom, gosto de seu estilo, o desfecho é belo (embora não tão surpreendente quanto costumam ser os desfechos de Saramago), o texto não perde ritmo, a alegoria proposta conduz a reflexões sobre assunto de extrema relevância. Há traços daquele anticlericalismo ingênuo que mancha vários dos livros dele, mas, no fim das contas, gostei da leitura e acho que o velho portuga continua com a corda toda. Esperemos apenas que o próximo livro deixe um pouco de lado as narrativas desprotagonizadas e nos apresente ao menos um ou dois daqueles personagens que trago impregnados na minha própria personalidade, como o Sr. José, como Cipriano Algor, Baltasar e Blimunda, ou o próprio Cristo humanizado do Evangelho. São eles o que há de maior na obra desse que é, ainda e certamente, meu escritor predileto.

ATUALIZAÇÃO: O mais recente livro de Saramago chama-se Pequenas memórias, mas não se trata de um romance. E está na minha lista de próximas leituras...

Os elementos de compreensão

"Interessando definir, na obra, os elementos humanos formalmente elaborados, não importam a veracidade e a sinceridade, no sentido comum, ao contrário do que pensa o leitor desprevenido, que se desilude muitas vezes ao descobrir que um escritor avarento celebrou a caridade, que certo poema exaltadamente erótico provém dum homem casto, que determinado poeta, delicado e suave, espancava a mãe. Como disse Proust, o problema ético se coloca melhor nas naturezas depravadas, que avaliam no drama da sua consciência a terrível realidade do bem e do mal." *

Tinha me esquecido do tanto que gosto de ler Antonio Candido.

* Formação da Literatura Brasileira, Introdução.