segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Abaixo a música! Ou ainda: abaixa a música!

Quero escrever um manifesto contra a música. (Aliás, por música entenda-se, ao longo de toda esta postagem, o conjunto de todas as possibilidades, melódicas ou não, mais ou menos ritmadas, acompanhadas de vozes cantando letras que atendam a um continuum bastante abrangente no que diz respeito ao bom gosto, sendo a maior parte das menções à referida palavra um tanto imprecisa mas que inclua batida percussiva e um baixo bastante marcado. Ou não.) Mas voltando ao ponto, acho que deveria ser proibido música em ambientes públicos. Eu sei, logo eu, um músico e tal, parece um contrassenso. Mas o fato é o seguinte. Música só é bom quando a gente escolhe ouvir. Não é necessariamente a música que a gente escolhe, mas o momento em que se quer ouvir música. E só é bom quando a gente, não gostando, pode evitá-la, dar as costas, ir embora. Como qualquer outra arte: não gostou, desliga, sai de fininho, tece um comentário embromador praquele parente que pinta umas coisas estranhas, ou escreve poesia marginal, hum, sim, claro, muito interessante, agora me deixa ir que eu tenho que pegar o bonde etc. Ou o pessoal que vende livro nos bares à noite, que educadamente pergunta, posso mostrar meu trabalho, e você dá ouvidos e olhos, ou não, conforme lhe aprouver.
Mas com a música não é assim. Cada vez mais (e é cada vez mais mesmo) a música ocupa nosso espaço diário. Forçadamente, quero dizer. Qualquer restaurante tem música, ao vivo ou não. Elevador tem música (nunca ao vivo, infelizmente). No clube tem música. No supermercado tem música. Na casa dos amigos tem música. Na festa do vizinho tem música. Na praça tem música. No banco, na oficina, no ônibus. Agora, com celulares escandalosos de todo tipo, tem música na rua, no meio da rua, enquanto você anda a pé ou espera alguém ou desce à padaria ou caminha no parque. Tem música embaixo da janela do seu apartamento. Música na TV, o tempo todo todo todo. Nos estádios de futebol, nos autódromos. Nas lojas. Nas livrarias. E, claro, nos carros. Este é o pior caso, e sobre ele é que eu quero destilar meu ódio mortal.
Os carros são boates ambulantes. Aliás pior que boates, porque a intenção de uma boate é ter música pra quem está dentro (embora incomode quem está fora). Mas nos carros não: a música é exclusivamente para chamar a atenção de quem está fora. Ainda que a quilômetros de distância. E os carros passam pelas ruas, um atrás do outro, seguidamente, cada um com uma música diferente (às vezes dá a impressão de que não são diferentes). Uns passam velozes, e mal se distingue a batida. Outros passam lentos, deleitando-se em fazer um barulho de proporções enlouquecedoras. Os que passam, no entanto, sejam lentos sejam velozes, são o mal menor. O ruim mesmo, o que tira o sossego à vizinhança, o que causa perturbações psíquicas ainda não estudadas pelos nossos estudiosos de perturbações psíquicas, são os que param. Nas praças, nos postos, nos estacionamentos, no quintal do vizinho. E abrem as portas, e o porta-malas, e aumentam o volume, e se exibem na sua imensa estupidez para espalhar infelicidade e desconforto a quem quer que seja. Uma violência gratuita, proposital, covarde. Não são pessoas más, diz a polícia, quando ligamos desesperados, estão apenas ouvindo música. E eu queria apenas moer a cabeça de uma dessas pessoas não más no meu triturador de alimentos, só uma moidinha, seu guarda, eu também não sou mau.
A música entra nos seus pensamentos, se mistura ao seu raciocínio, bota palavras na sua boca, faz tremer o seu corpo que queria ficar bem quietinho em silêncio. Treme as suas janelas, retumba no fundo do seu corredor, se confunde com as batidas do seu coração, de modo que você, ao deitar, não consegue distinguir entre elas e o tuntstunts do carro em frente. A música está nos enlouquecendo, aos poucos, compassadamente.
Outro dia aqui em Brasília um sujeito foi espancado quando foi reclamar do som alto de um carro em um posto de gasolina. Depois disso, seguiram-se boicotes, matérias no jornal, listas negras. A pressão funcionou e, pelo menos no que me diz respeito, minha vida melhorou muito. Embora o problema não tenha acabado, diminuiu espantosamente. O que prova tratar-se de um problema de solução simples: polícia e mobilização da imprensa e da vizinhança. Nem precisa usar o triturador de alimentos.
Mas fui a Pirenópolis neste fim de semana (para quem não sabe, Piri é uma cidadezinha colonial a duas horas de Brasília, com cachoeiras e trilhas e reservas de vida silvestre em volta, e uma vida noturna agitada e interessante), e lá, como aqui, por todos os lados os beócios passam ou param seus carros com um som num volume tão alto que chega a disparar os alarmes dos outros carros estacionados. Se você olha pra dentro do carro, vê normalmente quatro ou cinco jovens com expressões faciais que denunciam intelecto reduzido, pouca capacidade articuladora, falta de competência sexual, nenhum resquício do que um dia foram o tímpano, o martelo e o alicate (eu nunca lembro as ferramentas certas), sem falar na postura ridícula, curvadinhos em seus bancos reclinados. Aos quarenta anos, no máximo, além de surdos, estarão parecendo dromedários (sem ofensas aos camelídeos). Isso se eu não cruzar com um deles antes num beco escuro e com o meu triturador à mão.
São os piores tipos de idiotas da nossa sociedade. Conseguiram estragar a que eu considero a mais importante das artes, aquela mais íntima, a de mais afetiva presença nas nossas vidas, a arte que embala nossos namoros, que atenua nossas dores, que espanta nosso medo, que acompanha nossa solidão e alegra nossas festas.
Eu escuto e canto música o dia inteiro. Com os fones de ouvido num volume que compense as músicas-ambiente da cidade, devo ficar surdo pouca coisa depois desses pacóvios dos carros-boates. Mas é a minha música. Tem a ver com o que eu estou sentindo, com os acordes que vão me dar serenidade ou adrenalina na medida que eu escolher. E eu posso, a qualquer momento, desligá-la. Eu não vivo sem música. Mas estou convencido de que, numa sociedade madura e feliz, a música deve ser proibida em locais públicos. Como o cigarro e o boquete. Excetuando-se, evidentemente, os locais públicos de destinação específica para música, todos com devido isolamento acústico. Uma pena que eu não me candidatei a deputado nestas eleições. Nem provavelmente o farei jamais. Mas, se eu fosse eleito, o primeiro projeto que apresentava era o da proibição da música. Fora, música! Abaixo a música! Vivam os tampões de ouvido, os quais são responsáveis pelo que ainda resta do meu equilíbrio mental.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Mas que livro chato!

Andei lendo um monte de livro chato esses dias. Algum problema com a seleção? Ou serei eu que estou ficando chato?
Tentei ler O Pêndulo de Foucault, do Umberto Eco. Achei chato pra cacete e parei. Outro que achei chato — mas esse eu li até o fim — foi o Purgatório, do Tomás Eloy Martínez (que, acabo de descobrir, morreu outro dia). Dele eu tinha lido O cantor de Tango, que é um livro belíssimo. Já este último começa bem, parece que vai virar uma história interessantíssima, mas fica só na promessa. O livro muda o foco do que parece ser a história central e fica tratando dos absurdos da ditadura na Argentina etc.
Também larguei no meio, mas não por ser chato, o último do Saramago, Caim. Alguém aqui já ficou, como dizer, magoado com um autor? Pois eu estou magoado com o Saramago. Meu escritor predileto escreveu um livro repugnante. Ele escreve bem, claro, mas Caim não é um romance: é um tratado quase meramente teórico sobre o tanto que Saramago detesta Deus e a religião. Eu não sou nenhum fundamentalista, li O evangelho segundo Jesus Cristo e achei ótimo. Mas aqui não: neste último o cara chega ao nível mais baixo que eu já vi em assuntos ateísticos. Ele distorce tudo, mistura, mente, xinga, páginas e páginas pra ele manifestar ódio ateu. Fiquei com tanta raiva que joguei o livro fora. Espero que o velhinho escreva alguma coisa pra se redimir comigo antes de morrer.
Tem mais: li A grande arte, do Rubem Fonseca, e achei chato. Começa bem, mas desanda. Conheço gente que ama de paixão esse livro, então começo realmente a desconfiar que eu é que estou chato. Não, espera, eu também li o último dele, O seminarista, e gostei bastante.
E por falar em gostar, nunca tinha lido nada do Mia Couto. Aliás, até pouco tempo achava que Mia Couto era uma mulher (mais ou menos assim como todo o mundo acha de Ezra Pound). Mas fui ler Antes de nascer o mundo e, a despeito de ter achado algumas coisas chatas (ai, ai), gostei muito, já comprei outro dele e vou sair lendo o que encontrar pela frente. Fazia tempo que eu não, digamos, descobria um autor. Alguém sobre quem nunca estudei, não sei qual é o estilo, não li resenhas nem sei nada sobre a vida dele. Assim é que é bom. Recentemente resolvi não ler nem orelha de livro antes de terminar a leitura com meus próprios olhos. Eu é que gosto, eu é que acho chato.

Deve ser por isso, de tanto ler livro chato, que eu resolvi voltar a escrever por aqui. Mas desculpem se eu estiver, assim, meio chato.

ATUALIZAÇÃO:  Ói que coincidência, sô!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Desmemória

Ontem à noite, quase pegando no sono, lembrei-me de uma coisa que precisava resolver hoje e, alcançando rapidamente a caneta na mesa de cabeceira, escrevi no dorso da mão, para lembrar ao acordar, a letra C. E dormi tranquilo.

O maldito C está aqui na minha mão, esmaecendo já, logo mais se apagará totalmente, e eu passei o dia inteiro tentando lembrar o que significa esse raio desse C e não consigo. Foi muito pior do que simplesmente esquecer. Porque eu não vou resolver o que devia, e vou ter passado o dia inteiro angustiado porque esqueci de resolvê-lo, e nem sei o que era.

Não é a primeira vez que isso me acontece. Uma vez, por várias noites seguidas, quase pegando no sono, naquele estado confuso entre o sono e a vigília, sobressaltava-me com o mesmo pensamento, uma lembrança de algo que precisava ser feito, e no dia seguinte não me lembrava do que era. Aí levei uma caneta para o lado da cama e, ao se repetir o lampejo, escrevi na mão e dormi. A minha psicanalista ainda não conseguiu me explicar, nem eu sei o que significava, mas no dia seguinte estava escrito na minha mão: "ARANHA"!

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Mau atendimento

Na loja de cama, mesa e banho.
— Esses aqui são de pena de ganso.
— Ahn.
— É mais macio que o normal.
— Ahn.
— Um é cinquenta.
— Ahn. Mas... é que eu tenho pena do ganso...
— O travesseiro também.

Quiosque, na beira da praia. O negão de costas para o balcão, partindo um coco.
— Moço, esse coco aqui tinha muito pouca água. Dei dois goles e acabou.
E o negão, sem se virar, dando com a faca no coco:
— Reclame com Deus.


No Pelourinho:
— Quanto é o acarajé, minha tia?
— É três.
— Três? Mas lá na Cidade Baixa tava dois.
E a baiana, apontando com o nariz:
— Vá lá.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Eu adoro novidade. Tem gente que não gosta de mudança, prefere que tudo fique como está, fica com preguiça ou sem disposição de se adaptar a nova situação. Eu não. Fora mudar de nome e de sexo, acho que eu já mudei tudo o que podia ter mudado até aqui: emprego, casa, mulher, time, opinião sobre o Lula, violão, carro, posição dos móveis da casa, tudo vale mudar. Desafia a mente, sai da rotina, cria novas sinapses, sei lá. Mas é bom, quase sempre. Não precisa mudar o tempo todo, veja bem, trocar muito de mulher, por exemplo, dá muito mais trabalho do que dar um jeito de resolver as coisas com a que está aí mesmo. Só aconselho em casos extremos. Mas, de modo geral, gosto muito de quase qualquer mudança.

Por isso, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que passa a viger em 2009, me deixou feliz. A princípio achei ruim, porque a unificação das grafias não resolve o maior problema, que se refere às regras da norma-padrão, concordância, regência, colocação pronominal etc. Mas depois mudei de opinião e achei bom. Assim, como entusiasta das mudanças que sou, antes mesmo de o Acordo entrar em vigor, vou começar a atualizar os meus três blogues, adaptando-os às novas regras ortográficas. Mesmo as postagens antigas. Afinal, isso aqui é um blogue, e não uma biblioteca. Boa oportunidade para, em tempos de postagens magras, reler os textos antigos por aqui, que são bonzinhos, até.

* Se você clicar no título da postagem, vai cair direto no texto do Acordo, para saber o que muda. Se ficar com preguiça de ler tudo, posso responder a algumas perguntas lá no A Letra mata.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O americano médio

Eu odeio a expressão “o americano médio”. Aliás, não; não odeio. Acho até engraçada, às vezes. Na verdade, eu não acredito na existência do “americano médio”. Eu não conheço muitos americanos (acho até que não conheço nenhum; vamos ver se me lembro de algum até o fim da postagem). Mas conheço gente o suficiente para saber que em nenhum país do mundo deve existir alguma coisa que se possa chamar, assim tão generalizadamente, de “o alemão médio”, “o japonês médio”, “o somaliano médio”. Os americanos têm fama de não se importarem em entender o resto do mundo (e é capaz de ser verdade), mas quem fala em “o americano médio”, referindo-se a uma quantidade imensa de pessoas, num país com muito mais gente do que o brasileiro médio consegue imaginar, mostra que também não se interessa muito em entender o resto do mundo. Ou ao menos os Estados Unidos. Eu não me interesso pelos Estados Unidos. O que sei sobre eles é porque não há como fugir das notícias sobre eles. Não sei o nome dos estados, nem onde ficam. Não lembro quando foi mesmo a guerra civil, nem como escreve “sessessão” (seceção? çeçeção?). Não entendo de golfe, nem de futebol americano, nem de beisebol. Não sei o que faz um “secretário de estado” americano.

Mas não falo em “americano médio”. Não consigo sequer imaginar como ele seria (assim, fisicamente falando: só consegui pensar em vários rostos de atores americanos. Talvez alguns que eu imaginei nem sejam americanos). Ouvi alguém dizer que “o americano médio” elegeu Obama. Em 2004, li num texto de uma revista dessas grandes aí que “o americano médio” (re)elegeu o Bush. Aqui: tá faltando critério aí pra definir o que é esse “americano médio”. Quem elegeu o Bush, o Obama ou quem quer que seja o presidente da vez foi “a maioria dos americanos”, expressão que inclui ao menos em parte a imensíssima variedade de pessoas que uns chamam por aqui de “americano médio”. (O pior da expressão acho que é o singular. Se fosse “os americanos médios”, vá lá, ainda tinha espaço pra abranger alguma diferenciação; mas “o” americano médio, não dá, imaginei agora um sujeito meio parecido com o Tom Hanks, com um martelo na mão, no alto de uma escadinha, batendo um prego na parede da casa de madeira dele enquanto grita alguma coisa com o cachorro, e que resume tudo o que o americano é.)

Não fale, caro leitor, em “o americano médio”. Ao menos não perto de mim. Mesmo que você acredite na existência dele. E pare de ser antiamericanozinho. Uma coisa é discordar da postura política norte-americana diante do resto do mundo; outra coisa é ser antiamericano. Eu ainda não lembrei se conheço algum americano, provavelmente não, mas gosto da música deles, gosto do modo como os americanos se dedicam profundamente ao estudo de algum assunto que lhes interesse, admiro o fato de serem o único país da história que sempre elegeu democraticamente seus governantes. Um país razoavelmente bem-sucedido, com centenas de milhões de pessoas diferentes umas das outras tentando ser felizes. Torço para que o sejam. Boa sorte ao Obama e aos americanos.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Ah, mas e os buteco, comé que ficam?

Eu sou a favor da Lei Seca, que proíbe quase totalmente o consumo de bebida alcoólica para quem está dirigindo. Sou a favor dela pelo simples fato de que, numa sociedade em que nos acostumamos a contar os mortos em acidentes de trânsito usando pelo menos três algarismos, a cada feriado, e considerados os enormes percentuais de envolvimento de álcool na jogada, qualquer medida que tenha como objetivo direto um trânsito menos letal é boa a priori. Velocidade alta, por exemplo, também representa risco maior de acidentes, mas com radares instalados em pontos sabidamente perigosos, ou semáforos, por exemplo, esse risco é incrivelmente menor. O respeito generalizado à faixa de pedestres e o monitoramento de vias sensíveis, como pontes, por exemplo, também têm potencial de redução da violência automobilística. Mas nenhum desses cuidados é suficiente quando o motorista não tem absoluto controle de si mesmo e de seu carro. E a bebida, em qualquer quantidade, afeta num ou noutro grau esse controle. Considerando que todos são iguais perante a lei, não cabe fazer distinção de quantidades adequadas para cada pessoa, o que pode variar muito, inclusive para a mesma pessoa, de um dia para o outro. Os resultados da nova lei já se mostram bastante interessantes, muito melhores que os da idiota regra que proíbe venda de bebida nas rodovias. Porque o problema não é beber. A lei não deve se voltar contra a bebida, assim como não se volta contra o cigarro e, do meu ponto de vista, não deveria se voltar contra algumas drogas, cujo consumo é uma opção pessoal (sim, falo da maconha, que eu não fumo porque não quero, mas não gosto que me proíbam de fazê-lo, se quisesse).

Voltando ao ponto, a lei não é contra a bebida, portanto não se deve restringir sua venda (a não ser, ressalte-se, a menores de idade, por motivos evidentes). O que se proíbe, com toda a razão, é que alguém se ache no direito de dirigir em vias públicas após beber. Claro que a lei é severa e exige uma mudança de cultura, e as pessoas não querem mudanças de cultura, a não ser para os outros, esses mafiosos terríveis e sem coração que saem por aí bebendo e atropelando pessoas a esmo. Mas gostaria de rebater alguns argumentos — alguns bastante idiotas — contrários à lei seca.

O primeiro (e mais idiota) é o que associa a nova lei à falência dos bares e restaurantes, porque o consumo de bebidas vai diminuir e isso vai gerar desempregos terríveis. Esse é um argumento absurdo, e não precisava nem ser discutido. Mas, dada a recorrência com que aparece (inclusive nos jornais), discuto: a última coisa que deve ser levada em conta quando se fala de uma lei que busca diminuir as mortes no trânsito é o impacto econômico sobre determinado setor. Quer dizer, se os bares estão lucrando direitinho e os garçons têm emprego, então se legitima o caos nas pistas? É mais ou menos como se indignar contra a campanha anticigarro porque ela diminui o lucro das fábricas de cigarro e gera desemprego. É como ser a favor do desmatamento, porque ele gera empregos para os madeireiros ilegais da Amazônia. Há milhares de setores da economia que são fortissimamente regulamentados e, olha que coisa, vão muito bem das contas, como a indústria farmacêutica, por exemplo. Pessoas que acham que os fatores econômicos sempre devem ser considerados deveriam pensar nisso quando baixam músicas pela internet sem pagar direitos autorais, ou quando xerocam um livro que custa um preço razoável numa livraria do lado. Isso também gera perda de receitas privadas e públicas, bem como desemprego, além de prejudicar os artistas e autores. (Ressalto que eu baixo músicas pela internet todos os dias; mas eu não estou entre as pessoas que acham que fatores econômicos devam sempre ser levados em consideração — mas isso fica para outro texto).

Outro argumento (idiota, também) é este: nós, pessoas de bem, só queremos tomar nossa cervejinha em paz e voltar pra casa numa boa, não somos criminosos; a lei devia prender os bandidos, os motoristas sanguinários horríveis que enchem a cara e matam pessoas por aí. Essa distinção entre "pessoas de bem" e "criminosos terríveis" é típica dos nossos tempos. Mas deixa eu contar uma coisa: não existem nem uns nem outros. Acidentes fatais no trânsito, na maioria das vezes, envolvem pessoas que estão voltando honestamente das férias com a família, do trabalho, da escola com os filhos atrás, do churrasco na casa da vovó. A prisão não é nem deve ser lugar exclusivo de psicopatas completos, de pessoas más, de assassinos incorrigíveis: o ser humano pode até ser bom, mas faz maldade pra caramba, às vezes de propósito (até honestos pais de família), e a lei serve para que, ao menos, prestemos mais atenção a isso. Dissolver nosso superego em alguns copos de bebida (poucos que sejam) é incompatível com o trânsito, lugar em que nosso senso de obediência às regras precisa estar absolutamente desperto. Quem ignorar isso pode ser preso. Até pais de família. A lei — qualquer lei — não é contra criminosos. É a favor da sociedade, do plano coletivo, e contra o individualismo que se arroga o direito de correr riscos como bem entender.

Há um argumento difícil de rebater: se o testemunho do policial vale como prova de que estou embriagado, favorece-se a prática da extorsão, do suborno, da famosa cervejinha (mais ironicamente do que nunca). É de fato um problema. O Brasil tem vários princípios jurídicos que, não obstante salientarem o amplo direito de defesa, desfavorecem a própria lei. Se o cidadão (aquele de bem) se recusa a fazer o teste do bafômetro, nada mais evidente que presumir que ele tem algo a esconder e, portanto, não devia estar dirigindo. Mas a justiça diz que o cara não pode produzir provas contra si mesmo, então ficamos na mão dos policiais. Há nisso espaço enorme para a corrupção. Como os há também, infinitos, em todas as outras áreas da vida social. Se a possibilidade de haver corrupção fosse motivo para banir uma lei ou uma atividade, olha, ia ser um problemão, viu? Não sobrava um... De todo modo, vale repensar o modo de aplicação da lei seca. O fato é que é necessário um indicador preciso de nível de álcool no sangue. Depender da opinião de um policial (ou que fosse um especialista em bebuns, não é esse o problema...) sobre eu estar ou não embriagado é um defeito na nova lei, mas um defeito cuja solução extrapola os poderes da mesma lei.

Com efeito, nossas cidades ainda não estão bem preparadas para uma lei como esta. Mas já iniciaram uma adaptação. Há novos serviços, incluindo um que leva o pinguço pra casa no próprio carro! Há táxis. As pessoas têm amigos. O transporte público é uma merda na maior parte das cidades brasileiras, incluindo (talvez principalmente) a sua capital, é verdade. Mas é que as pessoas estão acostumadas a achar que pegar ônibus é coisa de pobre e que só serve pra ir e voltar do trabalho. Mais uma mudança de cultura necessária. Se as pessoas, principalmente as classes que têm maior capacidade de participação política (que não são os pobres, grosso modo) voltarem sua indignação não contra a nova lei, mas a favor de alternativas de transporte público mais razoáveis, as chances de a nova lei melhorar a vida de todo o mundo são bem maiores.

Disse-se também que as punições previstas na nova regra são muito rigorosas. Também acho. Mas é necessário. Isso lembra às pessoas que não estamos tratando de uma questão trivial. Que beber e dirigir é um erro grave. É, sim, um crime, mesmo antes de você atropelar alguém. Como é crime portar uma arma ilegal, mesmo antes de matar alguém. Como é crime quebrar o sigilo bancário de alguém, mesmo antes de usar essa informação para o que quer que seja. A punição rigorosa é mania de brasileiro, e não há outro jeito (eu não imagino nenhum melhor) de demonstrar a gravidade do erro que é beber e dirigir senão por esse meio.

Isso exige, no entanto, mudança cultural. Exige que pessoas aceitem mudar, mesmo quando elas não faziam "nada errado" antes. Exige um senso de coletividade maior do que o que se nota (ou não se nota) hoje. Ouvi outro dia que a nova lei está afastando amigos e aproximando vizinhos. Era pra ser uma crítica? Pois achei lindo. E duvido que afaste, de fato, os amigos.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Gatos

Estou digitando com sérias limitações datilográficas hoje. Meus dedos, mãos e braços estão machucados de arranhões e mordidas de gato, ou melhor, de gata. Dar remédio para gatos é uma tarefa inglória, como sabem todos aqueles que já o tentaram. Eu não sabia, quando resolvi criar bicho, e estou repensando seriamente minhas escolhas.
Mas uma amiga me mandou umas instruções que podem me ajudar a medicar minhas gatas, e disponibilizo o texto a todos aqueles que quiserem ter melhor sucesso que eu nesse procedimento. Aí vai:

Como dar um comprimido para o seu gato

1. Pegue o gato e aninhe-o no braço esquerdo, como se estivesse segurando um bebê. Posicione o dedo indicador e o polegar da mão esquerda em cada canto da boca do gato. Pressione levemente para que ele abra a boca. Tão logo isto aconteça, coloque o comprimido em sua boca. Permita que o gato feche a boca e engula a pílula.
2. Pegue a pílula do chão e o gato de trás do sofá. Encaixe-o no seu braço esquerdo e repita o processo.
3. Apanhe o gato no quarto e jogue fora os restos do comprimido que ficaram grudados no seu cabelo.
4. Pegue um novo comprimido, coloque o gato no braço esquerdo e segure as suas patas traseiras com a mão esquerda, force-o a abrir a boca e empurre o comprimido até a garganta com o indicador. Feche a sua boca imediatamente e conte até 10 antes de soltá-lo.
5. Tire o comprimido de dentro do aquário antes que envenene os peixes e o gato de cima do guarda-roupa. Peça ajuda a um amigo.
6. Ajoelhe-se no chão com o gato preso firmemente entre os joelhos, segurando suas quatro patas. Ignore os grunhidos emitidos pelo gato. Peça ao amigo que segure com firmeza a cabeça enquanto você abre a boca. Empurre uma espátula de madeira o mais fundo que puder na goela do gato. Deixe o comprimido escorregar pela espátula e esfregue a garganta do bichano vigorosamente.
7. Apanhe o gato que está grudado no trilho da cortina e pegue outro comprimido. Lembre-se de comprar uma nova espátula e remendar a cortina. Cuidadosamente enrole o gato numa toalha de modo que apenas sua cabeça fique de fora. Peça para o amigo mantê-lo assim. Dissolva o comprimido num pouco de água, abra a boca do gato com o auxílio de um lápis e, com o auxílio de um canudinho, sopre o líquido lá dentro.
8. Veja na bula do remédio se ele é nocivo para seres humanos. Beba um pouco de água para se acalmar. Faça um curativo no braço do amigo e limpe o sangue do tapete com água morna e sabão.
9. Busque o gato no vizinho. Pegue um novo comprimido. Bote o gato dentro do armário da cozinha e feche a porta, mantendo apenas a cabeça do gato do lado de fora. Abra sua boca com o auxílio de uma colher de sobremesa.Tente acertar o comprimido na boca do bichinho com o auxílio de um estilingue.
10. Vá até a garagem e apanhe uma chave de fenda para colocar a porta do armário no lugar. Coloque uma compressa fria nos arranhões do seu rosto e cheque quando tomou pela última vez a vacina antitetânica.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Desinteresses - Parte I

Poucas coisas no mundo me interessam menos que as eleições norte-americanas. (A diferença entre meiose e mitose, por exemplo, e outros assuntos da Biologia, que me interessavam menos que as eleições norte-americanas, neste período eleitoral me despertam viva curiosidade). Primeiro, porque eu não consigo (ok, não me esforcei minimamente para isto), eu não consigo entender lhufas das regras eleitorais de lá. Segundo porque, ora, porque não vai adiantar nada o meu interesse pelo pleito estrangeiro. Essas eleições de agora, então, me interessam menos ainda que as anteriores, porque em 2004 (foi 2004?) ao menos havia a fortíssima torcida contra um segundo mandato do Bus h. Agora nem isso. Claro que a possível vitória de um candidato negro deveria atrair todas as atenções, mas aí eu prefiro deixar para saber quando o resultado sair. O que vem antes é pura especulação e chatice. Você, caro leitor, pode argumentar que eu acho chato, na verdade, porque não entendo. E é a mais pura verdade. Mas isso se aplica a mais um montão de coisas na minha vida, as quais não me interessam simplesmente porque eu não as entendo. Como aquele negócio de os computadores todos se basearem em 0 ou 1, sabe? Não sabe? Nem eu. E não estou nem aí.

Por isso vou me abster de torcer por quem quer que seja e de dar palpites sobre os resultados eleitorais norte-americanos. Nem vou dizer que acho que tanto a Hi llary quanto o Alckmin não precisam de voto, mas de terapia.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Ah, é. Eu tenho um blogue!

Uma estorinha edificante:

Era uma princesa que vivia num castelo muito distante, num tempo mais distante ainda. Como já estava em tempo de pensar em casamento, seus pais, o Rei e a Rainha, lembraram-se do acordo que tinham com os reis de um castelo próximo de dar a mão da princesa ao herdeiro do trono vizinho.
A princesa, no entanto, gostava muito de passear pelo vilarejo e havia recentemente se apaixonado por um plebeu. Encontravam-se às escondidas, trocavam juras de amor eterno e sorrisos envergonhados. E planejavam um jeito de evitar o casamento com o príncipe herdeiro e de ficar juntos.
No dia em que o Rei anunciaria à nobreza o noivado entre sua filha e o filho dos reis vizinhos, a princesa encheu-se de coragem e declarou ao pai seu amor pelo plebeu. Escandalizados, Rei e Rainha tentaram de todas as maneiras persuadir a menina a não ser ingênua e a aceitar o bom casamento que se lhe oferecia. A princesa, no entanto, anunciou que, se fosse obrigada a se casar com o príncipe, morreria de desgosto.
O Rei e a Rainha conversaram entre si, durante um tempo, após o que o pai foi anunciar à filha sua decisão: fariam um concurso de poesia, e quem escrevesse o melhor poema ganhava a mão da princesa. O Rei sabia que o plebeu, plebeu que era, devia ser analfabeto, portanto o concurso seria fatalmente ganho pelo príncipe. A princesa, no entanto, em sua ingenuidade, quase morreu de felicidade e foi contar ao seu amado que haveria o concurso e que eles poderiam enfim se casar.
Ao ouvir a notícia, o plebeu fingiu contentamento, mas na verdade, como de fato era analfabeto, muito se entristeceu, pois sabia que perderia a disputa e a noiva. Entretanto teve uma ideia: lembrava-se de um tio seu que era poeta e morava numa cabana na floresta. Correu até a casa do tio e pediu-lhe que escrevesse um poema para o concurso. Assim, o plebeu entregaria a poesia do tio como se fosse de sua própria autoria, ganharia o concurso e a felicidade eterna ao lado da mulher amada.
Tudo foi feito como combinado e, no dia do concurso, o poema escolhido pelos jurados foi o poema do plebeu. Entre muitas palmas e aclamações, o Rei, desconfiado, disse:
— Muito bem. O ganhador do concurso, então, deve declamar seu poema em voz alta para o povo o conhecer.
Assustado, retrucou o pobre homem:
— Mas, Majestade, eu não costumo decorar os poemas que escrevo.
— Não tem problema — disse o Rei. — Você pode ler.
Aquela palavra gelou a espinha do plebeu. Seguiu-se que, naturalmente, todos descobriram a farsa que o plebeu tinha planejado, e o prenderam numa cela escura e fria, sem comida e sem água.
Alguns dias depois de preso, mal se aguentando nas pernas de tanta fome e sede, o plebeu implorou clemência aos seus carcereiros. O verdugo, no entanto, tomando de uma espada, cortou-lhe o viril membro e o serviu ao próprio plebeu acompanhado de um pão.
Sem ter alternativa, o plebeu comeu aquele sanduíche maldito, para aplacar sua fome.
Moral da história: escreveu, não leu...

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

JP Coutinho

"Se o pior cenário se confirmar no caso dos ingleses McCann, isso não prova a irremediável corrupção da natureza humana. Prova apenas a irremediável corrupção de duas vidas em concreto. Porque o resto continua. E o resto está num aeroporto de S. Paulo, ou Lisboa, ou Beijing: vidas normais de pessoas normais. E decentes. E presentes. Pessoas que em cada despedida dos seus, ou em cada reencontro com os seus, morrem ou ressuscitam perante o meu olhar grato e deslumbrado."

JP Coutinho, como sempre, muito sensato.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Céu de Brasília

Quem nunca subiu o Eixo Monumental às plenas seis horas duma tarde seca de inverno em Brasília não sabe, definitivamente, o que a cidade tem de melhor. De pior também não. Mas aquele sol quente e desproporcionadamente grande se pondo rodeado pelo céu mais ou menos azul totalmente limpo, por trás do horizonte plano, longo, aberto, espetáculo que vai se renovando à medida que se sobe a avenida e, chegado o alto, apresenta-se todo de novo: é o presente que esta cidade me deu hoje. E a raiva passou, e o cansaço passou, e a desilusão com uma vida que é incompreensivelmente mais difícil do que gostaríamos suavizou-se, e mesmo o engarrafamento perdeu importância, assim como perdeu-a o frio seco cortante desse mês de agosto que inexplicavelmente não tem feriados.

Brasília tem dessas surpresas. A surpresa de conhecer melhor alguém que inicialmente lhe pareceu antipático. A surpresa de sair às ruas a pé num anoitecer e ver que, a despeito dos riscos que o jornal anuncia, há um monte de gente passeando por elas. A surpresa de numa conversa rápida descobrir um amigo em comum (em Brasília bastam duas ou três palavras para que isso aconteça). Brasília é uma cidade monótona mas imprevisível. De um povo honesto que hospeda o centro da corrupção. Faltam-lhe calçadas e ciclovias, mas para-se o carro na faixa de pedestres. Centro do país, mas absurdamente longe de tudo.

Cidade de paradoxos, certamente. Que me guardou numa tarde aborrecida de terça-feira um pôr do sol que levarei na memória enquanto puder, para não me esquecer nunca de que esta é uma cidade bela. Mesmo em agosto.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Romantismo

Então. Tô em casa gripado tomando chazinho e consolando pelo MSN uma amiga que deu um pé na bunda do namorado justo hoje. E ouvindo o disco do Caetano, tentando decidir ainda se gosto ou não.


Estou com preguiça de dar opiniões. De analisar os fatos. De escrever sobre as coisas. Quero dar opiniões simplistas, só para meus dois leitores semanais não me chamarem de alienado. Por exemplo, Renan Calheiros é um mala. Kubica é um cara de sorte. Será que quem não tem TV a Cabo tem que torcer sempre pelo (ou contra o) Flamengo? Esse Chávez... Não sei não...

Aliás, a criaca entre Chávez e o Congresso Nacional não me interessou em nada, mas resultou em duas gafes linguísticas sensacionais do pessoal da CBN. Primeiro, o repórter CBN noticiou que Chávez chamou o Congresso brasileiro de "papagaio de pirata" (sic) dos Estados Unidos. Depois o idiota do Adalberto Pioto (sempre quis escrever alguma coisa falando mal do idiota do Adalberto Pioto; contem, por exemplo, quantas vezes ele fala "exatamente" em menos de um minuto), então, dizia eu que o idiota do Adalberto Pioto afirmou que Chávez teria dito que o Congresso brasileiro apenas retificava o que o americano dizia.
Ôu, pra ser repórter não precisa estudar mais não?

Então é isso, falei.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Novidade

Após séculos de inatividade literária, dois poeminhas novos aqui. Ok, não são novos, eu escrevi já faz um tempinho. Mas estreiam lá.

Andei também reescutando, com mais cuidado e distanciamento emocional, o disco novo do Caetano, Cê. E concluí que é mesmo muito ruim.
Mentira, tem umas três ou quatro coisas legais. A faixa "Homem", por exemplo, é um barato.
E vicia.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

JP Coutinho

Ok, ok. Vocês, meus caros leitores, têm toda a razão. Um mês sem atualizar o blogue e, agora, me vem postar texto alheio?
Francamente, hein, Luis Tavares!

Está certo. Reclamação registrada. Agora vai ler o texto do portuga, vai.

Virgens ofendidas

A virgindade era um fardo. Leitor que é leitor sabe do que falo. Basta lembrar os 13, ou 14, ou 15 anos, quando as conversas da escola rondavam esses assuntos. Virgens, nós? A imaginação tomava o lugar da experiência e começava o desfile de conquistas para espantar os colegas tão inexperientes como nós. Comiam-se bairros inteiros de amigas, e as mães das amigas, e uma ou outra empregada que entrava no quarto sem bater à porta primeiro. Os outros olhavam-nos com o espanto próprio dos inocentes e, para não ruborizarem em excesso, partilhavam igualmente as mentiras da idade. Virgens, todos. Garanhões, mais ainda. E quando o dia sacramental chegava, o ato era um detalhe. O prazer também. O alívio, total: como se tivessem libertado Sísifo da sua pedra incansável. Vai, Sísifo, esquece o fardo, esquece a pedra.

Por isso é estranho acompanhar as notícias que chegam de Inglaterra. Lydia Playfoot, 16, vai processar a escola. Motivo? A escola não permite que Miss Playfoot (curioso nome) ostente em público a sua virgindade e o comprometimento de chegar intacta ao casamento. Lydia usa um pequeno anel, inventado em 1995 por um evangélico do Arizona. A escola não gosta do anel por razões de segurança e higiene. E porque o anel "viola" (peço desculpa pelo verbo) a política escolar sobre joalharia.

Confesso: as razões de segurança e higiene, eu entendo. Vi umas fotos de Lydia nos jornais e saber que esta jovem de 16 anos gosta de mostrar a sua condição virginal ao mundo é como largar uma galinha na Etiópia. Um convite ao motim e uma barreira evidente à aprendizagem serena e responsável.

Mas interessantes são as leis da escola sobre jóias. Segundo parece, o estabelecimento permite que os alunos muçulmanos ou sikhs possam usar lenços, calças e outros adereços religiosos. O contrário seria uma intromissão intolerável na liberdade de culto e expressão. Mas isso não impede a mesma escola de proibir cruzes ou crucifixos, e qualquer manifestação exterior de religiosidade cristã, ou vagamente cristã. Como o anel.

O caso não ilustra apenas a imbecilidade do sítio. Mostra como o pensamento multiculturalista, que sustenta grande parte das "políticas sociais" na Europa, é, na verdade, um exemplo de intolerância que nega os seus próprios fundamentos. O multiculturalismo pressupõe uma visão neutral sobre culturas distintas, concedendo a cada uma delas a sua dignidade intrínseca. Mas essa suspensão de julgamento termina à porta do Ocidente. Termina, no fundo, à porta da tradição judaico-cristã. Todas as culturas merecem respeito, com a exceção de uma única. Que, por acaso, é a cultura da maioria.

E a virgindade de Lydia? É talvez um pouco risível que uma adolescente de 16 anos prefira anunciar ao mundo o que deve ser um assunto pessoal e privado. Mas a atitude é tão risível e, no limite, tão condenável como as histórias adolescentes e passadas, em que o anel era outro: um anel invisível de conquistas imaginárias para aliviar o fardo real da abstinência.

E se a estupidez é crime, não há adolescente que escape.

JP Coutinho, na Folha.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Plágio

A noção de plágio é recente na nossa cultura. Até poucos séculos atrás, o conceito de imitação prevalecia sobre o de plágio, e era revestido de um caráter educativo ou didático ou laudatório. Imitar o estilo de Homero, ou de Camões, ou de Góngora era considerado requisito importante para um autor ser apreciado.
Hoje prevalece uma noção mais ou menos confusa de originalidade, e tudo o que não é original acaba taxado de plágio. De acordo com JPCoutinho, há diferença entre roubo e plágio (leia, vai, é sensacional). Na blogosfera, o plágio campeia, seja no estilo, seja em textos inteiros. Este aqui, por exemplo, véve reclamando que o outro plagia tudo o que posta. Já corrigi milhares de dissertações e monografias acadêmicas que o Google já conhecia por inteiro. O plágio é uma instituição internética. Como os spams ou os peixinhos sorridentes e árvores de natal das páginas de recados do orkut. Como os contos do Veríssimo que circulam por aí sem jamais terem sido escritos por ele.

Mas, apesar disso, a gente sempre acha que não vai acontecer com a gente. Até que acontece.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Aniversário

Este blogue fez aniversário. Dia 3 de abril do ano passado, eu começava esta bagunça aqui. Estou ainda longe de, como o Almirante, chegar aos mil posts. Mas em um ano, considerando-se a quantidade de outras coisas que eu fiz e o tempão que eu fiquei coçando, até que tem bastante coisa. Vou listar aqui, em forma de retrospectiva, os textos que eu acho mais interessantes.
Quem passar por aqui durante a festa pode também opinar sobre qual post gosta mais.
Então segue uma seleção deles. Os critérios são totalmente pessoais, como não poderia deixar de ser, mas acho que vale a pena ler:

a) Depressivamente falando (sobre música);

b) Sushi (sobre o filme O jardineiro fiel e outras coisas);

c) Recuperação (um poema meu de que gosto muito);

d) A Lagoa Rodrigo de Freitas (em homenagem aos meus saudosos alunos);

e) A ilha (sobre o filme);

d) Cantoras (sobre, tcharã: cantoras);

e) Censura no blogue (sobre política, tentando não usar clichês);

f) Subemprego (sobre subempregos);

g) Confesso que não li (mas olha lá, hein? de lá pra cá eu já li alguns da lista; não vou dizer quantos nem quais, mas a situação está melhor que em junho de 2006);

h) Falando sério agora (sobre o ensino particular no DF);

i) Música (sobre música, uai);

j) Segundo turno (sobre um monte de coisas; post, aliás, que me rendeu milhares de visitas googlísticas a partir do eterno questionamento: como lidar com a sogra?);

k) Uma metáfora (sobre lixo na rua, ou sobre política);

l) De cama e Propaganda (do mês que passei doentinho na cama, vendo televisão 24 horas por dia);

m) Luta de classes (sobre o então recentemente iniciado "caos aéreo" — não tem umas aspas maiores neste teclado não?);

n) Quase desistindo (todo blogue passa por crises existenciais, não passa? Então, mas olha só o resultado da enquete: um massacre!);

o) Christmas resistance (texto bastante pessoal sobre o natal);

p) Carnaval (favor não levar a sério nada do que está escrito lá, ok?);

q) Ingênuo, eu? (sobre Saramago e Paul Auster);

r) Sábado (sobre o livro de McEwan);

s) Nova metodologia (se eles podem, eu também posso).


Uau, quase 20 posts. Acho que me empolguei. Ah, mas relê aí ao menos uns três ou quatro, vai.
Ou, se não, entra lá no A Letra Mata, que vamos começar a discutir algumas coisas importantes sobre as diferenças entre o português falado no Brasil e o português europeu.

Abraços e beijos!

sexta-feira, 30 de março de 2007

"Chacrinha?!"

"De tanto falarem em Chacrinha, liguei a televisão para seu programa que me pareceu durar mais que uma hora.

E fiquei pasma. Dizem-me que esse programa é atualmente o mais popular. Mas como? O homem tem qualquer coisa de doido, e estou usando a palavra doido no seu verdadeiro sentido. O auditório também cheio. É um programa de calouros, pelo menos o que eu vi. Ocupa a chamada hora nobre da televisão. O homem se veste com roupas loucas, o calouro apresenta o seu número e, se não agrada, a buzina do Chacrinha funciona, despedindo-o. Além do mais, Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo o instante — falta-lhe imaginação ou ele é obcecado.

E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de se tornar famoso, mesmo à custa do ridículo ou da humilhação. Vêm velhos até de setenta anos. Com exceções, os calouros são de origem humilde, têm ar de subnutridos. E o auditório aplaude. Há prêmios em dinheiro para os que acertarem através de cartas o número de buzinadas que Chacrinha dará; pelo menos foi assim no programa que vi. Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha?

Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente."

Clarice Lispector, em crônica publicada em 1967 pelo Jornal do Brasil,
extraído de A descoberta do mundo, ed. Rocco.

Você ainda não tinha visto nada, Clarice. Ainda não tinha visto nada...


quarta-feira, 28 de março de 2007

Nova Metodologia

Andei refazendo uns cálculos por aí e revisei minha idade 15% para baixo, o que me dá mais alguns anos de vida pela frente; e meu tempo de contribuição previdenciária, na verdade, era 20% maior que as estatísticas anteriores, o que me aproxima um pouco mais de poder me aposentar. Com a nova metodologia, verifiquei também que o meu saldo bancário e minha poupança (ops!) aumentaram em, no mínimo, 70%. Vou ligar e comunicá-lo ao meu gerente amanhã mesmo, para que ele faça as correções. Outro indicador importante que foi melhorado com a nova forma de cálculo do IPGE (Instituto Pessoal de Geografia e Enganações) é que meu aluguel deve baixar, já que se vão levar em conta agora as lâmpadas queimadas e o barulho do vizinho de cima, que não tinham sido considerados para o cálculo original.
Revisei para cima também minha nota na prova do último concurso público que fiz e — surpresa! — passei!!! O Cespe receberá minha notificação nos próximos dias. Minha conta do cartão de crédito foi revisada para baixo, e o banco me deve alguma coisa, assim como o leão do imposto de renda.
De acordo com a nova metodologia, a quilometragem do meu carro foi reduzida em 20%, o que gerou valorização do meu patrimônio. Os próximos números a serem revisados de acordo com a nova metodologia de cálculo do PIT (Produto Interno Tosco) são as visitas registradas pelo Sitemeter a este blogue, que estão evidentemente subestimadas, porque não levam em conta as visitas informais, que elevam em cerca de 10% o número de acessos por dia; e, na trilha do Romário, o meu número de gols marcados em peladas oficiais, que, por baixo, já contam mais de cinco mil. Morra de inveja, baixinho. Me segura que eu quero ver!

...

Como diz lá em Minagerais, eu güênto?!